quarta-feira, 7 de novembro de 2007

PESADELO

- Caramba, parece que o estou a conhecer de qualquer lado…
- Provavelmente… sabe, na vida conhecemos muitas pessoas, algumas bem interessantes, outras mais ou menos felizes, mas infelizmente eu só encontro gente na mó de baixo.
- Daí…
- Eu tê-lo encontrado ao longo destes longos anos, nos mais variados locais e circunstâncias. Conheço muitas das suas dificuldades e noites mal dormidas, acho até que esses problemas de coração…
- Também sabe que sofro do coração?
- É como lhe disse, todos os seus momentos difíceis estão arquivados no disco rígido das minhas memórias…
- Então você estava em Santa Apolónia nos anos 70…
- Claro que estava. O comboio chegou à 1 da manhã e você carregava uma prancheta de desenho técnico, foi apressado até ao Rossio, mas o metro já tinha fechado. Pensou apanhar um táxi, mas era caro e o dinheiro era pouco, e foi andando… Restauradores, Marquês, S. Sebastião da Pedreira, Praça de Espanha… a prancheta já pesava demasiado e você mudava de braço para braço… Sete Rios, Benfica, ali ao pé do cemitério. Eram 5 da manhã quando chegou a casa, acho que até se deitou vestido… e eu ali ao seu lado sem poder ajudar…
- Que estupada, para poupar 4$50… moeda antiga, claro. Mas é estranho, parece que o conheço, mas nunca o olhei olhos nos olhos, até custa a acreditar que saiba tanto da minha vida…
- Nem sabe o que eu sei… lembra-se daquele golo que a sua equipa sofreu, nos descontos e que lhe custou uma “chicotada psicológica”? eu estava a seu lado, andei consigo vários dias e noites.
- Mas eu lembro-me que nesses dias eu estive sempre muito só, como foi possível você estar comigo?
- Até me lembro que acordou a meio da noite, transpirando, e disse peremptório à sua mulher que nunca mais treinaria na vida… acredita agora em mim?
- Acredito, contrariado mas acredito.
- Um dia vi-o correr com a filha doente nos braços, à procura de um táxi que não havia, noite escura, eu sem hipóteses de ajudar e por fim apareceu um amigo que os levou ao hospital…
- Que pesadelo…
- Lembra-se daquele primeiro carro amarelo que comprou com muita dificuldade e que todos os meses lhe levava metade do ordenado em reparações?
- Se lembro…
- E quando andava a construir a casa e o dinheiro já não chegava para as despesas? Um dia achei que a coisa ia dar mau resultado e acompanhei-o. Se calhar já nem se lembra do caso... alguém lhe disse que numa cerâmica de Leiria vendiam uma tijoleiras que, depois de aplicadas e enceradas davam um chão muito bonito, assim como uns tijolos refractários para forrar a lareira, muito usados na época. O amigo lá percorreu os 50 kms de distância com uma motorizada e um atrelado emprestado, que não devia levar mais que uns 50 kgs de mercadoria. Chegado à cerâmica o encarregado ao ver o meio de transporte, achou por bem oferecer o material que pudesse levar. E você encheu o atrelado de tal maneira que nas descidas a motorizada não travava e nas subidas precisava de um empurrão, ou seja, metade do caminho foi feito a pé, mas o preço foi tão bom que no dia seguinte repetiu a dose...
- Então o meu amigo sabe tanto da minha vida e eu não sei nem o seu nome?
- Pesadelo, sem prazer nenhum!

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