quinta-feira, 26 de maio de 2011

A VIDA COMO ELA É...


A vida tal como ela é! (tirado de um anúncio televisivo da TMN, onde a felicidade está à distância de um simples telemóvel)


Intermarché de Alcanena, 6 de Fevereiro de 2006, pelas 17 horas de uma tarde de sol, num inverno de gente sem chama, sem sorriso, sem nada...
As pessoas tentavam contrariar o frio do exterior, prolongando a observação das prateleiras e comparando os preços dos muitos produtos em exposição, parecendo querer ficar um pouco mais por ali, alguns até na esperança de encontrar um amigo com quem pudessem conversar, talvez sobre futebol, uma coisa de que se pode falar sem criar susceptibilidades, nem a quem fala, nem a quem ouve.
Um casal mais ou menos jovem, asseado, modestamente vestido, com um bebé ao colo, de alguns meses de vida, bonito, lavado, vestido como todos os bebés e agarrado com ternura pela mãe, estava na máquina registadora... afinal era uma compra modesta, uma embalagem de papa para bebés, 3 iogurtes, um saco de plástico com pouca carne e mais uns artigos essenciais na proporção mínima para um casal e uma criança. A funcionária, com um rosto jovem mas fechado, cumprindo concerteza as instruções que recebera na formação mínima para o desempenho das tarefas, não olhava sequer o homem, mas dava mostras de sensação de indiferença, apenas igual à indiferença de mais umas quantas almas que se encontravam na fila e que naquele momento apenas queriam sair dali, que a pressa de chegar ao conforto de casa era muita.
E a máquina marcou 6 euros, num tilintar que nos pareceu significar alguma surpresa por uma compra tão pequena... afinal uma família tradicional portuguesa, um casal e um filho conseguiam abastecer-se num hipermercado por tão pouco dinheiro, quase provando a quem nos governa que já existe muita gente a poupar, que a crise veio pra ficar.
O homem, entregou à caixa o usual cartão multibanco para pagamento, mas... não dava certo, alguma coisa estava mal, porque à terceira tentativa o cartão continuava a negar-se a liquidar essa compra de 6 euros...
- o cartão não tem saldo, diz a funcionária.
- Mas ainda esta manhã deu...
- Quanto achas que tínhamos na conta? Pergunta o marido à esposa.
- Acho que tinha mais de 6 euros, ainda...
“mais de seis euros, mais de seis euros, mais de seis euros…” e o som ecoava com toda a força pelo espaço do supermercado, como um punhal que se espetasse no peito de todos nós, todos nós, todos nós, quase todos nós…
O ambiente pesado era cada vez mais um tormento para aquele casal e nada se alterava, nem o sorriso palerma de uns quantos que entre-dentes murmuravam “é a vida, é a miséria...”, onde uma enorme falta de solidariedade, de educação, de sentido de vida se notava e anotava...

A senhora começa a retirar as compras dos sacos onde estavam acondicionados e desabafa baixinho “ não faz mal, voltamos cá amanhã...”, no que o marido concordava acenando com a cabeça. E tudo ficaria por aqui se não houvesse alguém que achou que tudo estava a caminhar para uma situação desagradável e sem retorno, que não ia deixar a sua consciência em paz e decidiu intervir.
- O senhor vai desculpar, mas eu pago a despesa! Disse, de uma forma simpática e determinada, entregando uma nota à funcionária, desprevenida e admirada com a atitude.
- A senhora desculpe, mas não vale a pena, eu amanhã volto cá e compro. O cartão não deve estar a funcionar, disse o homem, incomodado com toda a situação...
- Oiça, o senhor, não me conhece, eu também não os conheço, mas não tem qualquer problema, um dia que me encontre em Alcanena e possa pagar, eu sei que você vai pagar, não se preocupe. Gostava de um dia poder ver essa criança feliz, com os pais.
A funcionária recebeu, registou, as pessoas aconchegaram a roupa e o tempo lá fora parecia um pouco mais frio que o habitual.

terça-feira, 17 de maio de 2011

PAUSA

Nunca me tinha acontecido, desde que comecei a escrever aqui no blog, até porque sentia uma absoluta necessidade de escrever e as novas tecnologias forneceram a cada cidadão uma maravilhosa máquina de escrever, sem aquelas chatices da borracha para apagar os erros no papel, com ofícios rasurados, muito embora se continuem a ver aqui, às vezes, erros de bradar aos céus, feitos por quem muito escreve e pouco acerta, especialmente no plano ortográfico, mas também no campo das ideias, bastando comprar um jornalinho de quando em quando para confirmar muitas lacunas familiares, escolares e sociais.
É essa pouca e indisfarçavel falta de leitura que nos torna cada vez menos aptos, menos confiantes e menos sociais, sim porque uma pessoas que não consegue dizer "duas seguidas" sem meter no meio o golo do Ronaldo, tende a afastar-se, ou a juntar-se apenas aos que metem as bolas do Falcão na "caixa dos pirolitos".
Uma coisa interessante de que me apercebi em pequeno e que achava quase um "ministério sacerdotal" era o tempo sagrado que o meu avô Manuel Inácio dedicava à leitura do Diário de Notícias, na sua casa de Santa Catarina, junto à janela que dava para a rua e de onde se via a taberna onde muitos conterrâneos se limitavam a beber uns copos de vinho e a falar do Benfica.
Outra coisa que também me marcou a infancia foi tentar perceber porque raio o meu avô Manuel, sapateiro, leitor de jornais e que não sabia uma nota de música, levou os seus quatro filhos a aprenderem e a tornarem-se todos bons músicos, arte com a qual sempre usufruiram de benefícios sociais, profissionais e económicos, que levaram o mais velho a uma carreira de músico profissional. Também aprendi o solfejo, toquei trompete e só não continuei porque tinha mais jeito para outras coisas...
Aconteceu até um caso curioso por volta dos anos 50, aquando de uma eleição para a Junta de Freguesia, com o aparecimento de um slogan escrito junto da parede da igreja e que dizia "Catarinense, lembra-te que vais escolher quem te há-de dirigir e a junta de freguesia não pode estar nas mãos de analfabetos", numa letra perfeita e escrita com tinta de sapateiro, pormenor que fez do leitor de jornais Manuel Inácio o principal suspeito das autoridades. Acontece que ele negou e as autoridades fecharam o processo declarando que a frase bem escrita e sem erros nunca poderia ter sido produzida por um sapateiro, estendendo as suas suspeitas a um estudante universitário que na altura passava umas férias na terra.
Na verdade, escrito a tinta de sapateiro e não sendo o pai sapateiro, facilmente se concluía que só poderia ter sido um dos filhos do sapateiro o autor da frase, mas isso só se soube depois do 25 de Abril, felizmente.
Curioso também o facto de Santa Catarina ter nos anos 50 e 60 do século passado um jornal mensal, onde eu pude ler as primeiras crónicas desportivas... e quem era o jornalista desportivo? o Juventino Ferreira, sapateiro, músico e jornalista, filho do meu avô Manuel Inácio.
A terra era na época, com jornal, banda filarmónica, equipa de futebol e respectivo campo, para além das festas anuais, uma localidade bem posicionada, mesmo em relação a muitas localidades do século XXI, neste país das novas tecnologias, onde o pessoal compra cada vez menos jornais.
E tudo isto para quê? não sei, apenas pensei nisso, talvez um pouco farto de ver os pobrezinhos da Bela Vista, filhos de pobrezinhos, netos de pobrezinhos e que culpam a sociedade de tudo e mais alguma coisa, em contraste com os netos do sapateiro Manuel Inácio, licenciados em economia, relações internacionais, educação física e os bisnetos que já andam por licenciaturas e mestrados sem esperar benesses ou subsídios dos serviços do Estado.
Às vezes é necessário uma pausa...