sábado, 25 de outubro de 2008

O FONTES!

Alguém me dizia que a ignorância é muito atrevida, contrariando até uma frase divina, "felizes os ignorantes porque deles é o Reino dos Céus" e aproveito para dizer que vai em letra grande para ninguém se sentir ofendido. Na verdade eu entendo que não devemos emitir opiniões sobre o que não sabemos, mas... já viram o silêncio quase total de seis mil milhões de generalizados ignorantes, conscientes de que o seu conhecimento é residual, cada vez mais, por culpa de uma elite que todos os dias descobre coisas novas? e isso provoca-me uma angústia que controlo cada vez menos, lançando-me medos a longo prazo, como um mal estar permanente, um sentimento de culpa, um esquecimento alzheimeriano ou uma tremura parkinsónica. Será que dos esquecidos também será o tal Reino? talvez sim porque Deus tem-se esquecido de muitos que não andam por aqui a fazer nada... não, não me refiro a esses que não fazem nada, porque isso é afinal o objectivo de todos nós, ou não pensamos todos os dias na baixa, no subsídio de reinserção ou na pensão de reforma? eu só me referia a uns entendidos que deviam estar quietos e que trabalham afincadamente para nos dificultar a tarefa de viver sem grandes chatices...
Lembrei-me então, em conversa com os amigos, de recordar algumas figuras mais mediáticas que fizeram parte do património social e cultural cá do burgo, de tertúlias, associações, grupos de meditação e outras actividades mais ou menos clandestinas e nem queiram saber o que aconteceu... das muitas figuras recordadas, cerca de 90% nunca fez nada ou procurou fazer o mínimo possível.
Afinal eles tinham tempo para tudo, podiam ficar até tarde que no dia seguinte não pegavam às oito, começavam o lanche antes do outros saírem do emprego e eram mais vistos e reconhecidos que aqueles que se enfiavam na fábrica e lá passavam o dia a trabalhar na clandestinidade que só o trabalho proporciona... talvez por isso a clandestinidade política se apoiasse fundamentalmente nos operários e camponeses, habituados a um trabalho duro e constante, bem como a uma remuneração que, por muito baixa, não lhes dava hipóteses de tentar uma integração nas ditas tertúlias.
Diz-se até que nos tempos da ditadura não deixavam os operários entrar nos cafés, mas eu não acredito... eles não tinham era dinheiro para lá ir, mas isso são pontos de vista que talvez se incluam no ignorante atrevimento do início desta crónica.
Mas lembrar-se aqueles que pouco faziam além das "despesas de representação" e ignorar tantos que construíram uma vida de trabalho é um erro do qual também eu me penitencio, porque também aqui estou a incorrer no erro de falar daqueles que se orientaram na vida sem transpirar muito a camisola.
Alguém me dizia que só os marginais, não no sentido literal do termo, mas aqueles que se foram da lei do trabalho libertando, poderão fugir do "olimpo do esquecimento", e os exemplos não faltam, desde o sempre reconhecido Bocage até esta malta que vem todas as semanas na Lux e dos quais escolhi o José Castelo Branco como expoente, mas eu sei que vocês já se lembraram de mais alguns nestes últimos trinta segundos.
Por aqui se lembra o amigo Anastácio, que só trabalhou um dia numa fábrica e concluiu, porque era inteligente, que alí não havia minas de ouro para explorar, decidindo fazer do jogo de cartas uma ocupação ate aos oitenta anos de idade... não enriqueceu, nem perto, mas usou sempre uma camisa branca com botões de punho e fato completo.
Falou-se também do "doutor" Pinheiro, que saiu da "casca da fábrica" logo que pode, para ser secretário particular de um industrial de apelido Moita, com direito a folga para ir todas as semanas ao mercado a Torres Novas.
Lembramos o amigo Coutinho que ao longo de 60 anos não dispensava o habitual lanche das 5 da tarde, com os amigos, que lhe criava bastantes dificuldades porque se via aflito para dar com a fechadura da porta de casa.
Bastantes mais foram lembrados, de Vila Moreira a Monsanto, da Louriceira ao Espinheiro, mas ninguém se lembrou do amigo Fontes... é verdade, o Fontes que ainda cá está cheio de saúde, mesmo com quase oitenta anos e dois maços de tabaco por dia, teve o enorme e injustificável defeito de trabalhar 60 (sessenta!) anos na mesma fábrica sem nunca ter dado uma falta ao trabalho. Ora, como é que a sociedade poderia conhecer o Fontes ou até mesmo agraciá-lo com uma comenda?

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